Marcelo Aith*
O ministro Gilmar Mendes, em sede de habeas corpus, trouxe importante inovação à tese aplicada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em relação as regras sobre o foro por prerrogativa de funções, popularmente conhecida como foro “privilegiado”. Atualmente, o Plenário do Supremo, em decisão proferida no final de 2018 ao analisar a questão de ordem proposta na AP 937, limitou o foro por prerrogativa de função aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e em função das atividades desempenhadas pelo ocupante (regra da contemporaneidade). Contudo, estabeleceu que ao encerrar o exercício da função exercida pelo ocupante do cargo, os autos deverão ser remetidos para a primeira instância (regra da atualidade).
Gilmar Mendes trouxe à discussão um novo entendimento, consistente na manutenção da competência por prerrogativa de função, mesmo após o encerramento do vínculo jurídico do investigado ou réu com o cargo que ocupava. Dessa forma, a posição adotada pelo ministro fixa a regra da contemporaneidade, que estabelece que os tribunais serão competentes, em razão da prerrogativa de função, nas hipóteses de os crimes cometidos durante o exercício do cargo e em razão dele, independentemente do fim do vínculo jurídico. Ou seja, por exemplo, um deputado federal acusado da prática de um crime comum (como peculato desvio), cometido durante a legislatura e em função dela (por exemplo, rachadinha), tem no Supremo o órgão competente para julgá-lo, mesmo que venha a renunciar antes de iniciar qualquer investigação. Esse entendimento busca afastar a brecha deixada pelo posicionamento atual do STF, que permite que o acusado altere, por vontade própria, a competência originalmente fixada pela Constituição.
O ministro destacou que: “Até por se tratar de prerrogativa do cargo, e não de privilégio pessoal, o foro privativo para atos cometidos no exercício das funções deve substituir mesmo após a cessação do exercício funcional. Afinal, a saída do cargo não ofusca as razões que fomentaram a outorga de competência originária aos Tribunais. O que ocorre é justamente o contrário. É nesse instante que adversários do ex-titular da posição política possuem mais condições de exercer influências em seu desfavor, e a prerrogativa de foro se torna mais necessária para evitar perseguições e maledicências”. E concluiu: “A subsistência do foro especial, após a cessação das funções, também se justifica pelo enfoque da preservação da capacidade de decisão do titular das funções públicas. Se o propósito da prerrogativa é garantir a tranquilidade necessária para que o agente possa agir com brio e destemor, e tomar decisões, por vezes, impopulares, não convém que, ao se desligar do cargo, as ações penais contra ele passem a tramitar no órgão singular da justiça local, e não mais no colegiado que, segundo o legislador, reúne mais condições de resistir a pressões indevidas”.
Não há dúvida do acerto da decisão. Diversamente do que se propala aos quatro cantos, a fixação de competência originária, para julgar determinados ocupantes de cargos, nos tribunais, não é um privilégio do ocupante, mas sim para proteger a dignidade do cargo ou função exercida, bem como para evitar as pressões externas sobre os órgãos julgadores. Imaginemos, novamente, a situação de um deputado federal, que está sendo acusado de ter desviado emendas parlamentares e tal fato foi amplamente alardeado na imprensa nacional. Como afastar a pressão que sofreria o órgão acusador e o juiz para que, respectivamente, denunciasse o parlamentar e o condenasse. Para evitar essa situação e possibilitar a paridade de oportunidades, surge o instituto da prerrogativa de foro, na medida em que se entende que os ministros do Supremo, pela experiência de vida e profissional, estão imunes às intervenções midiáticas.
Destarte, tal como apontado pelo ministro Gilmar, os fundamentos da prerrogativa de foro demonstram que ela serve a propósitos virtuosos, uma vez que propicia a manutenção da estabilidade das instituições democráticas e preserva o regular funcionamento do Estado, em que pese a imprensa insistir em tratá-la como um privilégio do ocupante do cargo ou função.
A manutenção da competência por prerrogativa de foro, mesmo com o fim do vínculo jurídico que atraiu a competência para o tribunal, está intimamente ligada à fundamentação da existência deste foro especial estabelecida na Constituição da República. O entendimento atual, que desloca a competência para a primeira instância na hipótese do encerramento do vínculo jurídico (por exemplo, a renúncia de um parlamentar federal ao seu mandato), está na contramão do escopo da prerrogativa de foro e serve, invariavelmente, para manobras jurídicas com objetivo de alcançar a prescrição da pretensão punitiva estatal.
Com a adoção do entendimento proposto por Gilmar Mendes, muitos ocupantes de cargos com prerrogativa de foro, como o ex-presidente Jair Bolsonaro, podem ter a competência fixada no Supremo Tribunal Federal. Um exemplo concreto é a investigação e possível denúncia, envolvendo o ex-presidente, no caso do desvio das joias recebidas pelo Brasil durante seu mandato. Mantendo-se o posicionamento atual do STF, a competência, não havendo envolvimento de outro ocupante de cargo com prerrogativa de foro na referida Corte, deverá ser deslocada para a primeira instância da Justiça Federal. No entanto, seguindo a tese trazida por Gilmar Mendes, Bolsonaro será julgado pela Corte Suprema do Brasil. Aguardemos as cenas dos próximos capítulos.
*Marcelo Aith é advogado criminalista. Mestre em Direito Penal pela PUC-SP. Latin Legum Magister (LL.M) em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ensino e Pesquisa – IDP. Especialista em Blanqueo de Capitales pela Universidade de Salamanca