A decisão proferida pelo Ministro Gilmar Mendes, determinando a suspensão nacional de todos os processos que discutem a licitude da “pejotização” — a transformação de trabalhadores em pessoas jurídicas para mascarar vínculos empregatícios — é mais do que uma medida processual: é um ataque frontal à competência constitucional da Justiça do Trabalho. Sob a justificativa de combater a insegurança jurídica, o Supremo, na verdade, promove um silenciamento institucional da instância judicial especializada em relações de trabalho.
Desde a Reforma Trabalhista de 2017, assistimos a uma ofensiva sistemática contra os direitos sociais, e a presente decisão é apenas mais um capítulo do desmonte institucional. O STF tem se comportado não como guardião da Constituição, mas como agente regulador de mercado, ditando normas de conduta à revelia do texto constitucional, especialmente dos artigos 7º e 114.
É grave e inaceitável que se acuse a Justiça do Trabalho de descumprir precedentes quando, na verdade, o que está em jogo é a análise concreta da relação fática entre as partes. O STF quer impor um modelo de decisão padronizado, ignorando a complexidade dos casos concretos. Não se trata de desobediência institucional, mas de cumprimento do princípio da primazia da realidade, que é um pilar do Direito do Trabalho.
A pejotização é uma das formas mais sofisticadas de precarização das relações laborais. Ela não apenas suprime direitos trabalhistas, mas também gera impactos diretos sobre a Previdência Social. Quando um trabalhador é forçado a se transformar em pessoa jurídica, o empregador deixa de recolher contribuições previdenciárias patronais, o trabalhador perde o acesso à seguridade social em sua plenitude, e a União sofre queda de arrecadação. Trata-se de um círculo vicioso que afeta toda a sociedade.
Os prejuízos são imensuráveis. A cada vínculo fraudado, perde-se um contribuinte para o sistema previdenciário. Os registros demonstram que, após a Reforma Trabalhista, houve um crescimento exponencial da formalização via CNPJ por profissionais que deveriam estar protegidos pela CLT. O rombo à Previdência se agrava, e a população é quem paga a conta.
Ao suspender os processos que discutem esse tipo de fraude, o STF não está protegendo a segurança jurídica, mas blindando um modelo de negócio que se sustenta na precarização. O Supremo, em vez de guardar a Constituição, age como sensor da Justiça do Trabalho, proibindo-a de cumprir seu dever institucional.
A prática da pejotização também está na raiz de vários problemas contemporâneos: o aumento da informalidade, a desproteção da mulher trabalhadora, a exclusão dos jovens do mercado formal, o crescimento de doenças ocupacionais sem cobertura do INSS e o endividamento de microempreendedores forçados ao CNPJ.
Se o STF acredita que pode substituir o juízo de convicção do magistrado trabalhista por uma diretriz dogmática e verticalizada, então estamos diante do fim da independência judicial. O que se espera da Justiça do Trabalho é que continue cumprindo seu papel de verificar o vínculo fático, apurar a verdade real e aplicar o Direito com base nas evidências, não nas conveniências de mercado.
O Supremo não pode se transformar em central doutrinária de blindagem patronal. Deve-se recordar que a competência para julgar a existência ou não de vínculo de emprego é da Justiça do Trabalho. Impedir que ela o faça é afrontar o art. 114 da Constituição Federal.
É preciso reagir. Juristas, advogados, professores, operadores do Direito, estudantes e toda a sociedade civil precisam compreender que está em curso uma tentativa de esvaziamento do único ramo do Judiciário que verdadeiramente protege o trabalho humano. E isso é feito em nome de uma falsa modernidade, que nada mais é do que o retorno ao liberalismo selvagem do início do século XX.
Conclui-se, portanto, que não se trata apenas de uma disputa entre instâncias. Trata-se da sobrevivência da Justiça do Trabalho como garantidora de direitos fundamentais, da dignidade da pessoa humana e da ordem social prevista no artigo 1º, IV, da Constituição Federal. Defender sua competência é defender o Estado Democrático de Direito.
Porque quando a Justiça do Trabalho é silenciada, o trabalhador também é. E a história já nos mostrou que, quando o trabalho perde voz, o país perde sua alma.
ARTIGO DE OPINIÃO
por Eder Araújo – Advogado, Professor e Especialista em Direito do Trabalho, Diretor da ESAT – Escola Superior da Justiça do Trabalho
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