Em Clearblue Blues (Editora Hecatombe, 2024), a escritora e tradutora Cristina Parga transforma a dor de três perdas gestacionais e a espera por sua filha, Catarina, em uma obra literária que desafia categorias. Misturando poesia, diário íntimo e ensaio psicanalítico, o livro — parte da coleção Mãe Leva Outra — questiona: Como a escrita pode ressignificar traumas e converter experiências pessoais em arte universal? Com linguagem que vai do lírico ao cru, Parga expõe o corpo feminino como território de desejo, luto e resistência. A autora estará presente na Bienal do Rio de Janeiro nos dias 19 de junho, pela manhã, no estande da editora Urutau e no dia 22 de junho às 16h, na Areninha do Escreva, Garota! para falar sobre seu processo de escrita e autógrafos durante o lançamento.
Em tempos de discussões sobre saúde mental e luto não reconhecido (como perdas gestacionais), Clearblue Blues oferece um testemunho literário raro, que combina vulnerabilidade e força. Dados da OMS, em relatório sobre “Aborto Seguro”, de 2021, e estudos como o publicado na The Lancet, no mesmo ano, “Miscarriage matters: the epidemiological, physical, psychological, and economic costs of early pregnancy loss” indicam que até 25% das gestações podem terminar em aborto espontâneo, especialmente nas primeiras semanas — tema ainda tabu, mas que Parga aborda sem romantizações, em trechos como “Meu útero, cemitério de bebês” (p. 29).
A obra levanta questões sobre como a criatividade emerge da dor, tema que será discutido pela autora durante o lançamento da obra, na Bienal do Rio. O livro divide-se em três atos (Blues, Encanto, Encontro), usando recursos como versos fragmentados e cartas não enviadas para simular o processo de luto. No prefácio, a psicanalista Joana de Vilhena Novaes (PUC-Rio) analisa como Parga “resgata elementos antigos da constituição de uma história de vida” para reconstruir seu desejo de ser mãe.
“Parga não escreve para consolar. Escreve para sobreviver — e nisso, convida o leitor a se reconhecer.” — Joana de Vilhena Novaes
Em Clearblue Blues, Cristina Parga não apenas narra sua jornada de luto e renascimento, mas também expõe as feridas abertas pela culpabilização da maternidade — um mecanismo social que recai sobre mulheres que vivem perdas gestacionais, enfrentam dificuldades na amamentação ou simplesmente não se encaixam no ideal romantizado da “mãe perfeita”.
A Solidão do Luto Gestacional
Em trechos como “Na emergência obstétrica, minha pulseira é sempre a verde — pouco urgente. […] Quantos filhos?, ela continua. — Nascido, nenhum” (p. 48), Parga revela como a sociedade trata a perda gestacional como um evento menor, algo a ser superado em silêncio. A ausência de redes de apoio — seja emocional, médico ou institucional — deixa mulheres como a autora à mercê de uma dor invisibilizada, muitas vezes carregada de julgamentos: “A médica me consola, sem jeito: ‘Você ainda pode ter outros, é normal ter uma ou duas perdas'” (p. 29).
A Maternidade sob o Patriarcado
livro denuncia ainda a sobrecarga estrutural imposta às mães. Em passagens autobiográficas (p. 68), Parga rememora os diários de sua própria mãe, que descreviam a solidão de cuidar dos filhos enquanto o parceiro se mantinha alheio às tarefas domésticas. Décadas depois, a autora se vê repetindo esse ciclo: “Preciso trabalhar. Ele sai todos os dias às 8h e volta quase às 19h — fiquei esses 4 meses sozinha com ela” (p. 64). A crítica é evidente: em uma sociedade patriarcal, a maternidade é individualizada como responsabilidade exclusiva da mulher, enquanto homens seguem sem ser cobrados por sua participação equitativa.
Falta de Rede de Apoio: Um Problema Coletivo
A terceirização do cuidado — como a contratação de babás (p. 65) — é apresentada não como luxo, mas como necessidade de sobrevivência em um sistema que nega licenças-maternidade dignas, creches públicas e suporte psicológico. Parga escreve: “Respeito muito as mulheres que passam 24 horas cuidando do filho e da casa — eu nunca daria conta”. A frase ecoa o dilema de milhões de mães brasileiras, especialmente as periféricas, para quem a “escolha” entre carreira e maternidade é, na verdade, uma armadilha estrutural.
Literatura como Resistência
Ao transformar sua experiência em arte, Parga recusa a culpa e devolve à sociedade seu próprio fracasso: “Minha filha não é um arco-íris […]. Ela não me completa, nem veio curar nada” (p. 72). Seu livro é um chamado para que a maternidade seja discutida como questão política, demandando redes de apoio reais — desde políticas públicas até a divisão igualitária do trabalho doméstico. Trecho da obra: “Escrevo porque ninguém lê. As palavras se libertam em soluços; como os fetos, se desfazendo em coágulos a custo” (p. 22).
Sobre a autora:
Cristina Parga (Rio de Janeiro, 1981) é escritora, tradutora e profissional do texto, autora dos livros: Qualquer areia é terra firme (7Letras, 2015), Furta-cores (7 Letras, 2012) e Cidadão Carioca (ArteEnsaio, 2015). É formada em Jornalismo (UNL—Lisboa), com pós em Tradução e mestrado em Literatura, Cultura e Contemporaneidade (Puc-Rio). Vive no Rio de Janeiro e é mãe da Catarina, nascida em agosto de 2022.
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ALEX YAN DA COSTA MENDES
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