Recentemente, foi realizado um debate pela corrida presidencial nos Estados Unidos entre Donald Trump e Kamala Harris, transmitido pela emissora de TV ABC. Durante o programa, algumas falas de Trump foram desmentidas ao vivo pelos jornalistas mediadores, destacando a importância dessa prática no combate a fake news, especialmente em um contexto de pós-verdade.
Mesmo com a checagem de fatos e a confrontação ao vivo pelos jornalistas, informações falsas proferidas por figuras públicas podem ter consequências reais graves. Um exemplo no debate foi a afirmação de Trump sobre imigrantes haitianos em Springfield (Ohio) que estariam roubando e comendo animais de estimação na cidade. Essa declaração foi imediatamente contestada pelo mediador e, anteriormente, já havia sido desmentida pelo prefeito local, que afirmou não existirem evidências da prática. Além disso, o Ministério das Relações Exteriores do Haiti emitiu nota, condenando o ato discriminatório aos haitianos e a desumanização. Contudo, após o debate, a fala de Trump viralizou, sendo compartilhada nas redes sociais tanto por apoiadores quanto por opositores. O boato acabou por se espalhar ainda mais, jogando entre as críticas ao absurdo da alegação e a incitação ao medo e ódio dos que acreditavam no evento extremo.
Em qualquer lugar e época teorias da conspiração e notícias falsas atendem a interesses políticos específicos. Quanto mais extrema a notícia, maior seu impacto e consequências. A alegação de que imigrantes (vindos de um país periférico de população majoritariamente negra) estariam atacando pets de estadunidenses (cujo país é historicamente marcado pelo racismo) não teve como consequência imediata gerar mais votos para Trump. Gerou sim reações extremistas de terror, resultando em 33 ameaças a bombas em Springfield, logo após o debate (incluindo o Centro de Recursos para Gravidez do Condado de Clark).
Os haitianos buscam oportunidades fora de seu país devido à violência e duras condições de vida existentes no Haiti. Ao mesmo tempo, a cidade de Springfield, nos Estados Unidos, possui alta demanda por mão-de-obra, o que teria atraído os imigrantes e ajudado os comerciantes locais em seus negócios. Desse modo, a fake news propagada por Trump acabou por afetar a vida da comunidade de haitianos e de quem convive e trabalha com eles, trazendo terror à população.
Como medievalista, habituei-me a ouvir do senso comum que a Idade Média foi uma era de trevas e ignorância. Porém, cada tempo histórico tem seus fatores de humanidade e conhecimento e de trevas e ignorância. As fake news atuais, como as ligadas à xenofobia, e seus usos políticos por grupos nacionalistas extremistas são fatores de trevas em nossos tempos, que geram medo, intolerância e violência. Recuando no tempo, observamos como na Idade Média e Moderna um caráter xenofóbico também se ligou a um objetivo político específico: a afirmação das monarquias nacionais cristãs e de autoridades municipais na Europa. A associação da identidade dos reinos a uma unidade cristã colaborou para a perseguição e morte de judeus, como no período da Peste Negra no século XIV. Os judeus foram culpados de envenenamento dos poços e eram vistos com desconfiança por se contaminarem menos (desconsiderando-se a vida mais restrita em suas comunidades e seus hábitos de higiene e de purificação específicos). Assim ocorreram diversos episódios violentos, como o massacre de judeus de Estrasburgo, em 1349. Outro tipo de acusação, identificada inicialmente no século XI na Inglaterra, era a difamação de sangue: quando uma criança cristã desaparecia em um local, judeus eram acusados de sequestrá-la e crucificá-la, o que levaria à expulsão ou o assassinato de judeus.
Ao longo dos séculos, fake news e xenofobia têm sido combinadas para objetivos políticos, como a perseguição de grupos minoritários e seu uso como bodes expiatórios. Essa dinâmica de medo e preconceito persiste, refletindo como a convivência com culturas diferentes pode ser manipulada para gerar xenofobia e violência. A propagação de rumores foi e continua a ser um fator de trevas e ignorância, prejudicando as sociedades. O fato é que o jogo político, econômico e social da humanidade não pode se basear num boato de que um grupo estaria crucificando crianças, ou de que outro estaria se alimentando de cães e gatos de outras pessoas.
*Mariana Bonat Trevisan é doutora em História Medieval e professora dos cursos de História, da Área de Língua e Sociedade, do Centro Universitário Internacional Uninter.
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JULIA CRISTINA ALVES ESTEVAM
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